Forte representante da cultura pernambucana, a cachaça traz grande potencial econômico em tempos de crise
Por Mariana Mesquita
Com 500 anos de história, a cachaça é um dos produtos mais tradicionais de Pernambuco. Apesar do tempo, o negócio segue em ascensão mesmo no cenário de crise econômica. Segundo a diretora executiva da Associação Pernambucana dos Produtores de Aguardente de Cana e Rapadura (Apar), Margareth Rezende, entre 2015 e 2016 houve um crescimento de 4% no volume de litros produzido no estado. Alguns dos produtores que se dedicam ao segmento de cachaças superpremium, envelhecidas em barris de madeiras nobres e com maior valor de revenda, estão inclusive ampliando seus parques industriais.
Apesar do preconceito que muitos ainda sentem em relação à bebida, a cachaça vem sendo cada vez mais valorizada e desperta o interesse de consumidores de dentro e de fora do país. O segmento é visto como uma das áreas mais promissoras para rodadas de negócios. De fato, os dados levantados no “Estudo sobre a Oportunidade de Feiras e Eventos de Negócios em Pernambuco” mostram que o segmento de bebidas se destaca, junto com setores diversos como tecnologia da informação, comunicação, economia criativa, desenvolvimento portuário, segmento fármaco químico, fruticultura irrigada, e mercados pet, fitness, de terceira idade e LGBT.
A pesquisa foi realizada em maio de 2017, através de parceria entre o Instituto Fecomércio-PE e o Sebrae-PE, com o apoio técnico-cientfico da empresa de consultoria CeplanMulti. Conforme aponta o estudo, feiras de negócios traduzem a busca por novos mercados e podem efetivamente beneficiar determinados segmentos da economia, trazendo oportunidades essenciais em meio à recessão. Para o economista Osmil Galindo, sócio-diretor da CeplanMulti, a cachaça é “um segmento com muito potencial, que vem atraindo inclusive o interesse de outras indústrias de bebidas etílicas”. Pernambuco tem um mercado peculiar, sendo “o único estado que possui uma convivência extremamente harmônica entre os grandes e pequenos produtores”.
Uma história de amor e luta
Pernambuco apresenta algumas vantagens em relação à produção da cachaça. A primeira delas, como aponta o engenheiro Jairo Martins (autor de “Cachaça – O mais brasileiro dos Prazeres” e outros livros sobre o tema), é o clima quente e ensolarado, propício à produção de cana com maior teor de sacarose. Mas, até chegar ao atual posto de segundo maior produtor da bebida, houve percalços, proibições e até guerras. Aqui, em 1516, na feitoria de Itamaracá, começou-se a destilar essa aguardente que se tornaria símbolo nacional. “É uma bebida que possui uma grande riqueza de tradições anteriores à chegada dos portugueses ao Brasil. O processo de destilação surge a partir do século X, através de alquimistas árabes, e Pernambuco é o primeiro ponto onde se desenvolveu o cultivo tropical de origem europeia”, especifica Gilberto Freyre Neto, que é coordenador de projetos da Fundação Gilberto Freyre e membro da Apar. Na Europa, era comum a ingestão de destilados para “proteger” o corpo antes das jornadas de trabalho. O costume foi trazido para as colônias e pode ser a raiz da visão negativa que perdurou por muitos anos, tratando a cachaça como bebida inferior e consumida por escravos, criando o estigma pejorativo do “cachaceiro”.
Apesar da origem humilde, a cachaça foi ganhando espaço; tanto que, em 1649, a Coroa Portuguesa proibiu sua comercialização (porque concorria com o vinho e a aguardente bagaceira, importados da Europa). A produção passou a ser clandestina e o impedimento estimulou um sentimento nacionalista: na Revolução Pernambucana de 1817, a cachaça foi um dos símbolos da luta contra o domínio português, e os intelectuais e artistas da Semana de Arte Moderna de 1922, em São Paulo, também recorreram à bebida como marca da identidade nacional.
“Todo brasileiro precisa ter na sua casa uma garrafa de cachaça branca, para fazer caipirinha, e uma armazenada ou envelhecida, para se tomar pura. Devemos oferecer cachaça às visitas com muito orgulho, principalmente às visitas estrangeiras. Infelizmente esta é uma lacuna cultural que temos e é necessário mudar de atitude”, conclama Jairo Martins.
Pernambuco trabalha para ampliar a exportação
Depois de acompanhar os altos e baixos da construção sociocultural do Brasil, a cachaça definitivamente ocupou seu espaço. Os dados não são fiéis à realidade, porque há um grau de informalidade muito grande, especialmente nos estados de São Paulo e Minas Gerais. Mas o número de litros de cachaça legalizada, produzidos no país atualmente se encontra na casa dos 800 milhões. O número é expressivo, contudo dá conta do quanto é preciso desbravar o mercado exterior: apenas 8,3 milhões de litros são vendidos a outros países, o que representa cerca de 1% de nossa produção. Desse total, 27,25% são enviados para a Alemanha.
“A exportação de cachaça é muito tímida e temos muito espaço para crescer”, alerta Margareth Rezende, da Apar. Ela traça uma comparação entre a cachaça e a tequila. “No México, se exporta entre 40 e 50% da produção de tequila”, aponta. Nosso vizinho latino-americano está colhendo os frutos de um amplo projeto setorial iniciado ainda nos anos 1960. “Os mexicanos defendem a tequila, sua bebida tradicional. Toda a cadeia veste a camisa. Se você entra num bar, os garçons imediatamente lhe oferecem uma margarita. Aqui, se você pede uma cachaça num restaurante fino, ainda vão olhá-lo com espanto. E não é culpa deles. Já ouvi um funcionário de hotel contando que tinha recebido vários treinamentos de vinho e nenhum de cachaça”, critica Margareth.
Para ela, este “é um gargalo que precisamos vencer e que vai levar longos anos”. “O mercado é difícil, tem muitas barreiras técnicas e tarifárias. É essencial ter apoio dos órgãos governamentais e não-governamentais”, acrescenta. Pioneiro também no ramo de exportação de cachaça, a Pitú iniciou o processo no país, fazendo o primeiro embarque para a Alemanha nos anos 1970. Pernambuco atualmente está ligeiramente melhor que o país como um todo. Em 2015, exportou cerca de 2,2 milhões de litros de cachaça e em 2016, 2,3 milhões. Como a produção local supera os cem milhões de litros, com destaque para a Pitú, o fato é que mais de 90% da produção vêm ficando restritas ao mercado nacional.
Associação amplia visibilidade da produção local
Através da Apar, que congrega seis produtores locais (Pitú, Carvalheira, Sanhaçu, Engenho Água Doce, Triumpho e Quilombo), vem sendo realizado um amplo trabalho de divulgação da cachaça, o que inclui campanhas de conscientização acerca do consumo moderado, para que a bebida seja prazer e não vício. “Queremos promover o reposicionamento da cachaça no patamar que ela merece, competindo com os melhores destilados do mundo”, resume Margareth Rezende, que entre 2012 e 2016 chegou a presidir a Câmara Setorial da Cadeia Produtiva de Cachaça, fórum que funciona dentro do Ministério da Agricultura, em Brasília.
O trabalho de formiguinha inclui a construção de uma carta da cachaça pernambucana (que traz uma base histórica e lista as empresas do estado), treinamentos (voltados para sommeliers, chefs de cozinha, garçons e outros profissionais) através de parcerias com restaurantes e hotéis, nos quais são abordados desde a história, até as características do produto e o modo de servir e eventos de degustação. Durante a Copa do Mundo de 2014 e as Olimpíadas de 2016, a entidade promoveu ações junto ao complexo hoteleiro e participou de um projeto junto com a Casa da Alemanha, servindo 7 mil caipirinhas e mil doses de cachaça envelhecida. Junto com o sorvete de açaí, a cachaça pernambucana foi o único produto brasileiro servido aos atletas, à imprensa e aos demais convidados alemães que frequentaram o espaço.
A Apar também fornece suporte a seus associados, no sentido de consolidar e melhorar a produção. Um exemplo disso aconteceu quando a Sanhaçu lançou sua cachaça premium envelhecida em barris de madeira umburana. A ideia foi de Jairo Martins, membro benemérito e consultor da Apar. Sommelier, pesquisador e professor no Senac Anhembi Morumbi, em São Paulo, e na escola de gastronomia alemã da Münchner Volkshochschule, em Munique, Jairo é especialista em harmonizar a bebida com pratos variados. “Enquanto outros destilados são envelhecidos apenas em tonéis de carvalho, a cachaça pode ser armazenada em 30 tipos de madeiras diferentes, abrindo um leque de opções para harmonizar com comidas”, explica ele.
A gerente comercial da Sanhaçu, Elk Barreto Silva, confessa que a empresa no início resistiu à proposta. “A gente não queria diversificar naquele momento e só resolvemos produzir quando ele aceitou assinar nosso rótulo”, relembra. Adocicada e com leve sabor de canela, a Sanhaçu Umburana é perfeita para ser degustada junto com nosso bolo de rolo e outras sobremesas. A dica certeira de Jairo Martins já rendeu 14 prêmios à Sanhaçu, entre eles o Concurso Mundial de Bruxelas (2014, 2015, 2016 e 2017) e o duplo ouro no Concurso Mundial de Destilados da China (2015).
Espaço para pequenos e grandes
O mercado pernambucano congrega produtores de diversas escalas – da Pitú, grande indústria que comercializa anualmente cerca de 95 milhões de litros, à Sanhaçu, que produz apenas 20 mil litros no mesmo período. “A nossa qualidade nos diferencia do resto do Brasil, e um fato importante é que não há canibalismo entre marcas. As empresas não brigam entre si”, diz Gilberto Freyre Neto. “Há uma boa convivência entre as cachaças industriais e artesanais, uma não tira o mercado da outra”, concorda Jairo Martins.
Qual a diferença entre cachaça e aguardente
Toda cachaça é uma aguardente, mas nem toda aguardente é cachaça. As aguardentes podem ser obtidas a partir da destilação de diversos vegetais, como cereais, raízes e frutos. Entre as diversas aguardentes que existem no mundo, podemos lembrar a italiana grappa (de uva), o japonês saquê (de arroz), o libanês arak (de uvas e anis) e o rum cubano (de cana), entre centenas de exemplos.
A cachaça é uma aguardente de cana-de-açúcar com graduação alcóolica de 38% a 48%, obtida a 20 graus Celsius pela destilação do mosto fermentado de cana de açúcar. Caso não atenda a esses requisitos (apresentando, por exemplo, maior ou menor teor alcóolico), a bebida só poderá ser comercializada como aguardente de cana.
Nomenclatura das cachaças
Cachaça industrial: produzida em larga escala com cana de açúcar, cultivada em grandes áreas. Utiliza fermentação por meio de produtos químicos. Geralmente é obtida através da destilação sim- ples em coluna contínua em tonéis de aço inox. Não separa a parte nobre do destilado.
Cachaça artesanal (de alambique): feita em escala reduzida por pequenos produtores, é obtida pela destilação em alambique de cobre. A fermentação ocorre de forma natural e a parte nobre da cachaça é separada das impurezas, para dar mais qualidade ao produto.
Cachaça orgânica: geralmente, trata-se de uma cachaça artesanal, que está livre de agrotóxicos e outras substâncias químicas durante todo o seu processo de produção. Assim, o produto é ambientalmente responsável e sustentável. Para ser considerada orgânica, a empresa precisa obter uma série de certificações. No Brasil, dentro de um universo de aproximadamente 4 mil marcas registradas, apenas 40 são orgânicas. No momento, a única cachaça orgânica pernambucana é a Sanhaçu.
Confira alguns exemplos de nossas marcas
Pitú
Fundada em 1938, no município de Vitória, a empresa é líder de mercado e se tornou uma das maiores indústrias de bebida do Brasil. Integra o ranking das 20 marcas de bebidas destiladas mais produzidas no mundo. Além da cachaça tradicional, a Pitú vem investindo no segmento de cachaças envelhecidas premium (Pitú Gold) e superpremium (Vitoriosa). É a empresa que mais exporta cachaça no Brasil. Entre as novidades,se destaca a cachaça Vitoriosa, envelhecida por no mínimo cinco anos em barris de carvalho francês e apresentando qualidade sensorial aprimorada, com aromas e cores refinados e produção em pequena escala, configurando-se como um produto-conceito dessa marca tradicional pernambucana.
Carvalheira
Criada em 1995 por Octávio Pinto Carvalheira e seu filho Eduardo, a empresa recifense tem uma marca bem-consolidada e vem promovendo parcerias com distribuidores e representantes em outros estados. Um de seus grandes diferenciais é o parque industrial de barris de carvalho, que é um dos maiores do Brasil. Nos alambiques de envelhecimento da Carvalheira, a cachaça descansa por cinco ou doze anos, dentro do processo de envelhecimento superpremium. Atualmente, a produção anual da Carvalheira é de 150 mil litros e existe a intenção de iniciar em breve a exportação de seus produtos. A sede da Cachaçaria Carvalheira, no bairro da Imbiribeira, também é muito conhecida como ponto de visitação turística e se tornou um disputado espaço de eventos na cidade do Recife.
Sanhaçu
Criada em 2000, a empresa é considerada pela Fundação Getúlio Vargas como uma das doze micro e pequenas empresas mais sustentáveis do Brasil. É a única pernambucana a produzir cachaça orgânica certificada. Tem uma produção pequena, de cerca de 20 mil litros anuais, que em breve devem se expandir para, no máximo, 50 mil. Trabalha com bebidas envelhecidas em três tipos de barris (freijó, carvalho e umburana), com uma gama de 13 produtos entre miniaturas e tipos de garrafa. Segundo a gerente comercial Elk Barreto Silva, a Sanhaçu acaba de fazer sua primeira exportação oficial este mês, enviando cem garrafas para a Áustria. “Mas já me mandaram fotos de cardápios dos Estados Unidos e da Austrália, onde vendem cada dose de Sanhaçu a 15 dólares. Eles sabem que somos biscoito fino”, afirma.
Triumpho
Criada em 2001 pelo empresário Pedro Oliveira, a cachaça homenageia Triunfo, sua cidade de origem, localizada no sertão pernambucano e com grande fluxo de turistas. O engenho São Pedro, onde a pequena fábrica está instalada, fica numa região onde tradicionalmente se costumava produzir cachaça, rapadura e mel de engenho. Pedro controla a produção do plantio ao engarrafamento, em parceria com 13 pequenos produtores de cana e produz uma bebida ecologicamente correta, não fazendo queimadas na roça e evitando uso de defensivos químicos. A Triumpho fabrica apenas 20 mil litros de cachaça por ano, divididos em tradicional e premium e ainda não tem planos de exportar seus produtos, por conta da reduzida escala produtiva. Apesar de pequena, é grande na qualidade e já recebeu uma medalha de prata no Concurso Mundial de Bruxelas, em 2011. No complexo turístico, que inclui uma pousada e um parque aquático, ele recebe visitantes para usufruir de degustação e forró pé-de-serra.
Engenho Água Doce
Fundada em 2003 por Mário Ramos Andrade Lima Filho, no município de Vicência, a cachaça artesanal divide espaço com outros produtos típicos de cana de açúcar, como a rapadura, o mel de engenho e os licores. Mário controla toda a cadeia produtiva, do plantio ao engarrafamento da bebida e está ampliando seus pontos de distribuição em 12 estados brasileiros. Anualmente, cerca de 30 mil litros de cachaça são produzidos pela empresa, dividos nos segmentos prata, ouro e premium. O Engenho Água Doce funciona também como equipamento turístico, recebendo visitantes que podem conhecer as etapas de produção dos produtos e fazem degustação, ao final.
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